ESPORTE

COI sofre pressão para mudar regra e permitir protestos nas Olimpíadas

Atleta Gwen Berry protesta no pódio dos Jogos Panamericanos de Lima 2019 - Crédito: Reprodução/Twitter Atleta Gwen Berry protesta no pódio dos Jogos Panamericanos de Lima 2019 - Crédito: Reprodução/Twitter

A americana Gwen Berry detém a quinta melhor marca de todos os tempos no lançamento de martelo. Campeã dos Jogos Pan-Americanos em Lima 2019, atleta olímpica na Rio 2016, ela desponta como uma das favoritas ao pódio nos Jogos de Tóquio, em julho.

Mas não são só as conquistas que fazem dela um nome a ser lembrado. Gwen cerrou o punho durante o hino americano depois de conquistar o ouro em Lima, em um protesto à imagem e semelhança do de seus compatriotas Tommie Smith e John Carlos.

Ambos protestaram contra a desigualdade racial nos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos do México, em 1968, em um episódio conhecido por apoiar o movimento dos Panteras Negras- os dois foram retirados daquelas Olimpíadas, perseguidos nos EUA e nunca mais conseguiram retomar suas carreiras.

Cinquenta e um anos depois, a discriminação racial persiste. A luta continua necessária e as consequências, parecidas. Gwen que o diga.

"Logo depois que desci do pódio em Lima, eu recebi uma ligação de um dos meus patrocinadores dizendo que não iria tolerar aquele tipo de comportamento. Eles me cortaram verba de patrocínio na hora. Eu perdi 80% da minha renda. Perdi minha segurança, minha vida foi exposta. Meu nome estava nas notícias nacionais", afirmou Gwen, de 31 anos, em entrevista exclusiva ao GE e ao Esporte Espetacular.

Além disso, ela foi suspensa pelo Comitê Olímpico Americano (USOPC) por 12 meses. Nos dias que se seguiram, recebeu ameaças. Era o terceiro ano da administração de Donald Trump.

"As pessoas diziam que iam me matar. Me falavam 'volte para onde você veio, você desrespeitou a nossa bandeira e o nosso país'", rememorou Gwen, que jamais se arrependeu do gesto em Lima.

"Eu tinha alguma coisa dentro de mim, algo estava borbulhando e eu não estava em paz. Eu sabia que o hino americano não representava pessoas negras. Assim que subi ao pódio disse a mim mesma que precisava defender alguma causa, tinha que mostrar às pessoas que atletas como eu as escutam", observou.

Hoje, o protesto de Gwen soa como um prenúncio do que viria no ano seguinte. George Floyd foi assassinado pelo policial Derek Chauvin há pouco mais de um ano, em um ato de brutalidade que ficou marcado pelas palavras de finais de Floyd: "I can't breathe" ("Eu não consigo respirar"). De lá para cá, o movimento "Black Lives Matter" ("Vidas Negras Importam") explodiu, e o mundo do esporte aderiu. Atletas como Lewis Hamilton e LeBron James participaram ativamente de manifestações contra o racismo e exigiram poder usar as competições esportivas para protestar.

Cenas como as dos protestos ao longo de 2020 podem se repetir nas Olimpíadas de Tóquio, mesmo que, neste caso, não seja permitido. Isso porque o COI (Comitê Olímpico Internacional) veta qualquer tipo de manifestação nos pódios ou arenas de competição olímpicas. Está no artigo 50 da Carta Olímpica, uma espécie de constituição que dita as regras das Olimpíadas, que "nenhum tipo de demonstração ou propaganda política, religiosa ou racial é permitida em qualquer evento olímpico, local, ou outras áreas".

Mas atletas e entidades internacionais querem mudar essa realidade, e a pressão sobre o COI só faz aumentar. A Global Athlete, uma organização internacional de atletas, vem pressionando o comitê olímpico a abandonar ou pelo menos modificar o artigo da Carta Olímpica.

"O COI está dizendo para os atletas quando eles podem e quando eles não podem falar, e o que eles podem ou não dizer. E na Declaração de Direitos Humanos da ONU a liberdade de expressão é um direito básico que todos devem ter acesso. Atletas são pessoas antes de serem atletas. Chegou a hora de mudar, de permitir que atletas se posicionem contra injustiças sociais e raciais para o que o esporte e o mundo sejam lugares melhores", disse Cob Koehler, diretor geral da Global Athlete.

No ano passado, o COI divulgou um documento com orientações sobre o assunto para os atletas que estiverem em Tóquio. Ele disse ser a favor da liberdade de expressão e que os atletas podem se manifestar nas áreas determinadas para entrevistas, por exemplo. Mas afirmou também que a regra 50 serve para proteger a neutralidade do esporte e dos Jogos Olímpicos, onde os atletas fazem parte de uma comunidade global com diferentes valores e pontos de vista. Ou seja, até o momento protestos no pódio e nas áreas de competição seguem proibidos.

"Atletas sacrificam suas vidas inteiras para estar no pódio, é o nosso pódio. O mínimo que podemos ter é aquele momento único do pódio. É quando estamos no topo do mundo", comentou Gwen.

O que pode ser o ponto de virada na discussão se deu no final de 2020, quando o comitê olímpico americano anunciou que não vai mais punir quem fizer protestos pacíficos durante competições e cerimônias de entrega de medalhas. Os EUA são a maior potência olímpica mundial e o país que leva a maior delegação a cada edição, incluindo muitas das principais estrelas do esporte mundial.

Depois dessa reviravolta, o COI decidiu agir, e uma pesquisa sobre a regra 50 foi feita com mais de 3.500 atletas e ex-atletas. O ge e o Esporte Espetacular tiveram acesso ao questionário. São 12 perguntas do tipo sobre o tema, tais como: 1) Com qual frequência e de que forma você se manifesta?; 2) O quanto você acha apropriado manifestações no pódio e em outros lugares dos Jogos?; 3) Você prefere se manifestar invidualmente sobre uma causa específica ou prefere fazer parte de uma mensagem unificada pelos valores olímpicos?

A metodologia da pesquisa foi muito criticada pela Global Athlete, que considerou a formatação direcionada para obter resultados específicos. O resultado da pesquisa será apresentado ao comitê executivo da entidade que vai se reunir a partir desta quarta-feira.

"Se não forem permitidos protestos pacíficos, eu acho que os atletas vão protestar do mesmo jeito. Nós falamos com atletas nos EUA e outros países que vão desafiar a regra se não houver uma mudança", disparou Cob Koehler.

Atletas brasileiros se dividem em relação ao tema

"A gente acredita, sim, que essa regra precisa ser atualizada. Ela é antiga, precisa ser modernizada e modificada. De modo que se entenda que quando uma manifestação tem um teor que está relacionado a proteção à vida não é ao mesmo tempo uma manifestação política. Em contrapartida a gente sabe que essa manifestação precisa ter um limite imposto nessa regra", afirmou Yane Marques, medalhista olímpica e presidente da Comissão de Atletas do COB (Comitê Olímpico do Brasil).

"Eu sou a favor da liberdade de protesto, mas com critérios. Eu acho que a gente precisa dar contexto quando a gente está falando de algo assim porque, por exemplo, numa final olímpica de natação os atletas vão ser anunciados raia por raia. Nesse momento pré-prova se um dos nadadores decide fazer um protesto, ele pode prejudicar a performance dos outros nadadores. Ou trazer emoções das pessoas que estão nas arquibancadas. Imagina se uma pessoa, um espectador, não gosta daquele protesto, ele começa a jogar coisa na piscina. Isso vai prejudicar a competição. Outro momento que eu não concordo é o pódio olímpico. Para mim, o pódio olímpico é sagrado, eu acho que não é hora de fazer protesto, ali a gente está celebrando os três medalhistas olímpicos desse ciclo. Eu sou mais conservador e acho que o pódio precisa ser sagrado. Onde que a gente pode fazer protesto? Na zona mista, que é onde está toda a imprensa, onde a gente tem voz, onde a gente pode falar o que quiser sem prejudicar ninguém", ponderou o campeão olímpico Cesar Cielo.

Carol Solberg, uma das melhores jogadoras de vôlei de praia do país, esteve no centro desse debate. Ela fez uma manifestação política depois de conquistar o bronze em uma etapa do circuito brasileiro do ano passado.

"Só pra não esquecer, fora Bolsonaro", protestou contra o presidente, ainda em quadra, em uma entrevista.

Carol acabou julgada e absolvida do caso pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva do vôlei. O caso teve grande repercussão e o esporte brasileiro também ficou diante dos dilemas da regra 50.

"Eu acho que está mais do que na hora de essas regras serem revistas. Acho que não dá para a gente viver isso nos dias de hoje, com tudo que acontece no mundo. Aquilo ali estava dentro de mim, eu sou uma atleta, mas eu sou uma pessoa que não sou alheia ao que tá acontecendo no mundo. Então, quando eu estava dando aquela entrevista me veio esse sentimento mesmo, foi uma coisa totalmente espontânea de querer me expressar, querer me manifestar, me posicionar diante do que a gente está vivendo", afirmou a jogadora.

Rogério Sampaio, diretor-geral do COB, disse que a entidade entende a importância da regra 50 na organização dos Jogos Olímpicos, mas que ela precisa ser flexibilizada.

"O mundo mudou nos últimos anos. Mas é sempre importante dizer que o Comitê Olímpico do Brasil aguarda o posicionamento do COI e que nós vamos seguir aquilo que for determinado", disse.

Um dos indicativos do que pode acontecer é que, para Gwen Berry, o cenário começou a mudar. Ela recebeu um pedido de desculpas oficial do Comitê Olímpico Americano e um prêmio pelo trabalho humanitário que tem feito. A lançadora de martelo voltou a treinar e a ser patrocinada e agora, a menos de cem dias para as Olimpíadas de Tóquio, ela se prepara para vencer.

"Foi um enorme primeiro passo. Isso permite que os atletas profissionais não tenham medo de perder e de apoiar alguma causa, eles podem protestar. Eu não tive nenhum apoio. Quando você quer criar uma mudança, em qualquer país, você precisa de apoio. Mas isso não é o suficiente, de forma alguma", lamentou.

A luta continua.

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