Meio Ambiente

Como diplomatas norte-coreanos e prostitutas tailandesas movem o milionário negócio que ameaça rinocerontes da extinção

Prostitutas tailandesas, bandidos do Vietnã, super-ricos da China e a população humilde de Moçambique; ex-policiais da África do Sul e diplomatas da Coreia do Norte: esses são apenas alguns dos personagens envolvidos na complexa rede de tráfico de chifres de rinoceronte.

Sudan (foto) era o último macho da subespécie dos rinocerontes brancos do norte. Ele morreu no Quênia neste mês (Foto: Reuters) Sudan (foto) era o último macho da subespécie dos rinocerontes brancos do norte. Ele morreu no Quênia neste mês (Foto: Reuters)

De 2007 a 2014, a caça ilegal desses animais para retirar seus chifres cresceu cerca de 9.000%. Hoje, a sobrevivência dos rinocerontes está ameaçada pelo crime organizado.

Para se ter uma ideia do tamanho da tragédia, em 2007, foram 13 rinocerontes mortos na África do Sul. Em 2014, esse número tinha subido para 1.215.

A morte destes animais atende a um mercado milionário e, com a crescente demanda, as redes de contrabandistas seguem a estrutura típica das "novas máfias" do mercado global.

Quando dizemos a palavra "máfia", o que vem à mente são figuras como a do ator Marlon Brando (1924-2004) no papel de Don Corleone em O Poderoso Chefão, ou o personagem Tony Soprano na série que leva o nome de sua família.

Mas a verdade é que, no começo da década de 1990, os mafiosos aposentaram o terno risca-de-giz e os charutos e começaram a se adaptar ao novo mundo globalizado. As novas máfias são tão opacas quanto quaisquer corporações multinacionais, têm negócios espalhados por vários países e usam operações complexas de lavagem de dinheiro.

Por isso, antes de falar sobre o tráfico de rinocerontes, é preciso explicar como agem os "novos mafiosos" do crime organizado transnacional.

Comecei a pesquisar o surgimento desse novo tipo de crime transnacional há 14 anos. Em minhas viagens por vários países, conversei com criminosos e investigadores. E o que eu percebi é que as novas máfias, muitas vezes, funcionam como "franquias".

Mark Galeotti, da Rússia, é um especialista em crime transnacional e segurança. Um dos grupos criminosos mais poderoso no país dele é a máfia dos chechenos - a maioria dos membros, como o nome sugere, veio da antiga república soviética da Chechênia.

"O nome 'máfia chechena' virou uma marca, uma franquia. Uma espécie de 'McMafia', pode-se dizer", comenta Galeotti. O nome é uma referência à franquia de lanchonetes McDonald's, com restaurantes no mundo todo.

"Eles emprestavam o nome para milicianos de várias cidades, mediante pagamento, e desde que esses 'franqueados' mantivessem sua palavra. Se um grupo se dissesse ligado aos chechenos e deixasse de cumprir uma ameaça a alguém, por exemplo, isso estaria 'desvalorizando' a marca deles. Os donos do nome viriam atrás", conta Galeotti.

O modelo surgiu na Rússia dos anos 1990, mas agora se espalhou mundo afora - e por todo tipo de atividade criminosa. Operações similares são usadas pelos traficantes de drogas da Colômbia e por cartéis do Vietnã especializados em comercializar animais ameaçados de extinção.

Nos últimos 20 anos, surgiram também Estados mafiosos - países onde o poder público está nas mãos de políticos e altos burocratas com aparentes vínculos ao crime organizado. Críticos acusam a Rússia sob Vladimir Putin de ser um Estado mafioso, assim como a Coreia do Norte.

No caso do regime comandado por Kim Jong-un, dizem os críticos, há uma razão objetiva: o país está quase totalmente desligado do sistema financeiro internacional. Por isso, enquanto estiver sob sanções de outros países, a única forma de a Coreia do Norte obter moeda forte (como dólares ou euros) é lançando mão de meios ilegais.

Em 2015, a polícia de Maputo (capital do Moçambique) prendeu um grupo de homens que carregava um chifre de rinoceronte, uma quantia alta em dólares americanos, um pequeno valor em moeda local e, o que é bastante estranho, quatro sacos de arroz.

Dois dos detidos eram cidadãos norte-coreanos, que diziam ser diplomatas baseados na África do Sul. A Justiça definiu a fiança de ambos em US$ 30 mil, que eles pagaram no ato, antes de sair de Moçambique.

Na época, o repórter investigativo Julian Rademeyer noticiou as prisões. Ele aprofundou as apurações sobre o caso e escreveu um relatório que é considerado um marco nesta área, chamado Diplomats and Deceit ("Diplomatas e enganação", em tradução livre). Acesse aqui a íntegra do estudo, em inglês.

Quando visitei Rademeyer em Joanesburgo (África do Sul), fiquei chocado com o relato dele sobre a extensão do envolvimento do regime norte-coreano em atividades de contrabando.

"Várias das embaixadas norte-coreanas em países africanos formam uma rede de comércio ilícito de chifres de rinoceronte, cigarros e minerais", escreveu ele. Rademeyer explica ainda que "os diplomatas (norte-coreanos) atuam sob a proteção do Bureau 38, um departamento obscuro do governo da Coreia do Norte, cujo único propósito é levantar dinheiro em moeda forte".

O salário médio de um embaixador da Coreia do Norte é US$ 1.000 (cerca de R$ 3,3 mil) por mês, muito abaixo do que ganham os diplomatas de outros países. Para efeito de comparação: um diplomata brasileiro de início de carreira ganhava, no começo de 2017, cerca de R$ 17 mil. Por isso, além de levar moeda forte para seu país natal, os norte-coreanos têm um forte incentivo para tentar complementar os próprios salários.

Ao longo do tempo, diplomatas norte-coreanos foram presos tentando vender bebidas alcóolicas e cigarros no mercado paralelo; traficando heroína e metanfetamina; e até participando do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. O governo da Coreia do Sul estima que esse tipo de atividade ilegal gere quase US$ 1 bilhão por ano para o vizinho do Norte.

Em 2006, um grupo de desertores da Coreia do Norte disse que o líder anterior, Kim Jong-Il (pai do líder atual, Kim Jong-Un), tentou retirar o país da rede de tráfico de drogas ilícitas.

Aparentemente, Kim Jong-Il percebeu que o narcotráfico estava prejudicando a imagem do seu país. Essa é uma teoria. A outra é a de que o governo chinês estava preocupado com o crescimento dos casos de abusos de drogas na China e resolveu intervir no país vizinho.

Com o fim (ou a diminuição) do tráfico, os diplomatas norte-coreanos não puderam mais pagar suas contas com artimanhas como esconder milhares de tabletes de anfetamina em uma mala diplomática.

Foi aí que os funcionários norte-coreanos na África vislumbraram um novo nicho de mercado. O surgimento de uma nova classe média abastada na China e no Vietnã tinha revivido a demanda pelo chifre de rinoceronte - o pó do chifre é considerado um medicamento pela medicina tradicional chinesa e é usado há milênios.

Na verdade, o chifre de rinoceronte é feito de queratina, a mesma substância presente em unhas e pelos - inclusive humanos. Não há qualquer evidência de que o material tenha alguma propriedade medicinal.

No começo dos anos 2000, o comércio do chifre de rinoceronte não estava entre as prioridades das novas quadrilhas transnacionais. Tráfico de pessoas e comércio de armas e drogas eram as atividades preferidas.

Do fim dos anos 1980 até por volta de 2008, autoridades africanas e de países como a China e o Iêmen pareciam estar perto de erradicar o comércio de chifre de rinoceronte, assim como o de presas de elefante.

No Iêmen, os chifres são esculpidos e usados como cabo de um tipo tradicional de adagas, conhecido como jambiyas. Essa demanda era maior nas décadas de 1970 e 1980, e, embora ela ainda exista, não se compara com os preços mais altos oferecidos na China.

Até algum tempo atrás, as populações de elefantes e rinocerontes na África estavam crescendo a um ritmo saudável. Algumas das espécies desses animais tinham deixado a lista de ameaçados de extinção. Até que, por volta de 2008, o número de rinocerontes mortos por seus chifres começou a crescer de forma exponencial.

Hoje, o chifre de rinoceronte é uma mercadoria mais valiosa que a cocaína, a heroína e o ouro. Dependendo do mercado, as raspas do chifre podem custar de US$ 25 mil a US$ 60 mil por quilo (algo como R$ 200 o grama).

A conjunção de gente empobrecida e oficiais corruptos na África, somada à atuação de criminosos e espiões de países asiáticos, criou um desafio para as autoridades da região. Combater esse tipo de crime também requer investimentos com os quais a maioria dos países simplesmente não consegue arcar.

O policial aposentado "Big Joe" Nyalunga é hoje réu da Justiça sul-africana, junto com outras pessoas. Nyalunga é um dos acusados pelas autoridades locais de caçar rinocerontes para retirar os chifres. Como ex-policial, ele está familiarizado com o funcionamento do Judiciário em seu país.

Nyalunga foi preso em dezembro de 2012, mas logo conseguiu deixar a cadeia depois de pagar uma fiança. Seu julgamento está marcado para meados de 2018. Ele nega todas as acusações.

Para os acusadores, porém, Nyalunga atuou como um "patrão" do tráfico de rinocerontes. São esses "patrões" que organizam os moradores das comunidades rurais para as caçadas. Muitas vezes, eles recrutam moradores locais em situação de extrema pobreza, mas que conhecem o ambiente natural e sabem como rastrear os animais.

O produto das caçadas é vendido a atravessadores, que são os responsáveis por exportar o material - principalmente para países do Extremo Oriente. Lá, os chifres de rinocerontes são transformados em amuletos da sorte, ou moídos para o suposto uso medicinal.

Segundo o Ministério Público sul-africano, Nyalunga obteve ganhos vultuosos com o comércio de chifres, ao longo de anos de atividade. A promotora sul-africana Ansie Venter, que trabalha nessa área, está há anos tentando colocar "Big Joe" na cadeia.

Numa caçada de rinocerontes, descreve Venter, os animais são atingidos primeiro com rifles de alta potência, de forma a imobilizá-los. Como os criminosos querem fazer tudo o mais rápido possível, os animais têm os seus chifres cerrados enquanto ainda estão vivos e conscientes.

Depois de perder os chifres, os rinocerontes são abandonados para morrer lentamente. Não interessa aos caçadores matá-los imediatamente, pois um rinoceronte morto no meio da savana geralmente atrai abutres - que podem acabar servindo de alerta para guardas florestais ou policiais.

Os "patrões" são muitas vezes tidos como uma espécie de "Robin Hood" pelas pessoas que trabalham com eles na África do Sul e em países vizinhos, como o Zimbábue e Moçambique. As comunidades locais se ressentem do fato de seus governos gastarem altas somas de dinheiro para proteger a vida selvagem - em benefício de turistas brancos e ricos - enquanto os moradores locais são abandonados.

A promotora Ansie Venter conta a história de um caçador que ela denunciou anos atrás, chamado Elliot Mzimba. Condenado a sete anos de prisão, Mzimba tinha na época 43 anos de idade e é pai de seis filhos. Ele é natural de uma região de Moçambique que faz fronteira com o Kruger Park, uma imensa reserva ambiental sul-africana com contingentes significativos de animais selvagens (o local tem a maior população de rinocerontes do mundo).

Segundo Venter, Mzimba é um caso típico. "Geralmente são pessoas sem educação formal, gente pobre e desesperada por alguma renda", diz.

Com o aumento repentino do valor do chifre de rinoceronte, o Kruger Park e suas imediações passaram a atrair vários caçadores ilegais do Zimbábue, um país empobrecido pela crise econômica de 2008 e por um aumento no desemprego rural graças à um malsucedido programa de reforma agrária do ex-presidente Robert Mugabe.

Na mesma época, por volta de 2006, as autoridades começaram a avistar asiáticos em número cada vez maior nas imediações do parque (e não eram simples turistas).

Os asiáticos não eram só os diplomatas norte-coreanos: bizarramente, foram encontrados também gângsters do Vietnã e strippers tailandesas. De fato, entre as pessoas detidas na mesma ocasião que "Big Joe" Nyalunga, havia dois cidadãos vietnamitas.

Para os extremamente ricos, é possível matar animais de grande porte legalmente na África do Sul - inclusive leões, elefantes e rinocerontes. Os clientes tradicionais são super-ricos de meia-idade da Europa ou da América do Norte, como o dentista de Minnesota Walter Palmer, que em 2015 ganhou as manchetes ao matar o leão Cecil no Zimbábue.

A partir de 2006, os organizadores desse tipo de safári na África do Sul perceberam o surgimento de uma clientela nova: "empresários" vietnamitas e, algo mais esquisito ainda, garotas da Tailândia.

Nem os vietnamitas e nem as tailandesas sabiam como caçar animais de grande porte. Em vez disso, contratavam atiradores locais para matar as presas. Garotas com trajes de safári diminutos costumavam posar para "selfies" com os animais mortos.

O que os investigadores descobriram mais tarde é que, nesses casos, as garotas tailandesas não eram turistas vindas de fora, e sim imigrantes que já moravam na África do Sul. Trabalhavam em boates de Joanesburgo e haviam sido contratadas por representantes locais dos verdadeiros responsáveis pela caçada, sem que estes precisassem deixar a Ásia.

Desta forma, as prostitutas tailandesas ganhavam um dinheiro extra - cerca de 5.000 rands sul-africanos (R$ 1.400) - e os traficantes permaneciam em seus países, economizando os custos de viagem.

Outra característica dos novos mafiosos do mundo globalizado: muitas vezes, esses grupos são mais ricos e mais bem equipados que as agências governamentais encarregadas de combatê-los.

Caçadores ilegais usam armamento de origem militar, veículos sofisticados e até helicópteros para as caçadas, frustrando os esforços dos guardas ambientais.

Khristopher Carlson é pesquisador-sênior da organização Small Arms Survey, um centro de estudos dedicado a analisar e buscar padrões em ocorrências violentas. Recentemente, ele sugeriu a um comitê da ONU o levantamento sistemático de informações sobre a munição usada na caça ilegal na África. O mesmo procedimento deveria ser usado em relação ao armamento apreendido. Desta forma, seria possível rastrear e conter o tráfico de armas ilegais.

Para tentar fazer frente aos caçadores ilegais, a direção do Kruger Park decidiu militarizar seus guardas ambientais. O mesmo foi feito pelos resorts privados ao redor - há guardas equipados com aeronaves, drones e armamento sofisticado. Por isso, alguns especialistas temem que uma nova "corrida armamentista" possa estar em andamento na savana africana.

Se este caminho for mesmo trilhado, não será a primeira vez. Basta lembrar a "guerra às drogas" financiada pelos Estados Unidos em países da América Latina a partir do final do século 20 - o saldo é de milhares de mortes em países como o Brasil, o México e a Colômbia. E o problema das drogas não foi resolvido.

Para a especialista em segurança Tuesday Reitano, o emprego de forças militarizadas ou das próprias forças armadas traz ainda um outro problema: os mafiosos podem acabar corrompendo indivíduos-chave nas tropas de segurança.

Reitano faz parte da Global Initiative Against Transnational Organized Crime (Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional em tradução livre), uma organização dedicada a reduzir a influência de criminosos ao redor do mundo. Para Reitano, a estratégia "militar" contra o tráfico de chifres de rinoceronte parece não estar funcionando.

"O uso de armamento pesado está aumentando no leste da África (onde fica Moçambique, por exemplo) como um reflexo direto da estratégia militar para conter a caça de elefantes e rinocerontes", diz ela. "Precisamos entender e avaliar os possíveis efeitos colaterais dessa estratégia antes de implementá-la."

Há um consenso entre especialistas em segurança e autoridades de todo o mundo: o crime organizado internacional é hoje uma das principais ameaças em todos os países, comparável até mesmo à mudança climática, epidemias globais e armas de destruição em massa.

Mas como o destino dos rinocerontes africanos sugere, esse é um problema que ainda estamos muito longe de resolver.

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